Era domingo de manhã e o sol já o incomodava. Abriu os olhos, sentou-se na cama e vestiu os chinelos. Olhou a sua volta, deu decara com o espelho e preferiu voltar a dormir. A vida havia sido severa demais com ele naqueles últimos dias. Pôs a mão sobre a fronha dotravesseiro e percebeu estar úmida. Envolveu-o nos braços e apertou-ofortemente, como se abraçasse alguém. Então, sentiu o perfume pelo qual havia se apaixonado, mas que agora virara apenas uma lembrança.
Tornou a deitar e molhou ainda mais a fronha. Hesitou, mas criou coragem e levantou-se. Coçou a barba, pegou os óculos em cima da cômoda e desceu as escadas. Sem dizer palavra alguma, deu um beijo na testa dos dois filhos, fazendo uma leve carícia nos cachinhos deles. Continuava quieto e de cabeça baixa. O filho menor aproximou-se e deu-lhe um beijo no ombro. Ele sorriu e o abraçou.
Estava inseguro e desolado, mas tinha que se mostrar forte. O outro menino aproximou-se e também quis ser abraçado. Permaneceram durante um tempo naquele sofá. Queriam preencher o vazio de seus corações, mas era difícil.
A campainha tocou. Era o filho do vizinho que convidava os dois meninos para brincar. Mesmo sem muito ânimo, foram convencidos pelo pai com o pretexto de que aquilo lhes distrairia. Ficou sozinho. Deitou-se no sofá e notou uma garrafa de Whisky no alto da estante. Levantou-se, puxou uma cadeira e pegou a garrafa. Bebeu de uma só vez o que sobrava dela, o que foi o suficiente para fazê-lo dormir.
Por volta das três horas da tarde, os filhos chegaram. Entraram na sala correndo. Estavam suados e sujos de terra. Eufóricos. O pai abriu os olhos, notou a presença deles e fechou-os novamente. Voltou a sonhar. Os garotos corriam em volta da mesa e gritavam. Depois foram para os fundos. Passado algum tempo, a campainha tocou novamente. Pensando ser o filho do vizinho, chamou pelos filhos, mas nenhum dos dois atendeu. Chamou-os de novo, desta vez mais alto, mas ainda assim não obteve resposta. A campainha era
insistente e ele decidiu levantar. Passou diante do espelho e ignorou as marcas feitas em seu rosto pelas listras do sofá.
Chegou ao portão e deparou-se com um mendigo que pedia comida. Ele respondeu que não havia nada para lhe oferecer, mas o pedinte insistiu, dizendo que sempre recebia um pedaço de pão com manteiga e leite com café da dona da casa. Disse também que aceitava qualquer coisa, desdeque fosse da geladeira. O homem estranhou a exigência, mas tornou a falar que não tinha nada para ele comer, inclusive usou a desculpa de que tinham acabado de voltar de viagem, o que era mentira. A verdade é que ninguém mais daquela casa fazia compras e que o estoque de comida estava acabando, mas não por falta de
dinheiro. O mendigo insistiu e começou a deixar o dono da casa irritado.
Então, pediu nem que fosse um copo de água, mas tornou a exigir que fosse da geladeira.O homem, vendo que o pedinte só iria embora quando trouxesse algo, resolveu ir à cozinha. Passou pela sala e o filho mais velho perguntou pelo irmão. Explicou que estavam brincando de esconde-esconde, mas que não o achava de jeito nenhum,
que até já tinha desistido de procurá-lo. O pai não deu muita importância, deu alguns passos e chegou na cozinha. De repente sentiu algo estranho, um calafrio.
Deu mais alguns passos, pôs a mão na porta da geladeira e recordou o sonho interrompido pelo mendigo. Sonhou com sua mulher. Estava aflita, querendo avisá-lo de alguma coisa.
Finalmente, abriu a geladeira e encontrou o que menos esperava. Era tarde demais.
(Alessandra Marcuz de Souza Campos
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